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quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Javier Cardona




No horário marcado eu estava lá. Esperava ser recebida pelo moço lindo das fotos, aquele que encanta com seu sorriso, espontaneidade e versatilidade artística. São muitos anos acompanhando todas as suas performances nas poesias, músicas, fotografias, criatividade...

O moreno estilo Antônio Banderas, que já é meu amigo há pelo menos 6 anos e mora logo alí, mas que por falta de tempo, oportunidade e vontade, nunca nos movemos à nos conhecer pessoalmente. Já até passei por ele na rua, mas nunca havíamos marcado um encontro.

A motivação foi a hérnia de disco que o acometeu. Fui lá pensando em dar uma força, porque ele estava sentindo dor, mas ele se recusou a me deixar arrumar a casa. Veio abrir a porta amarrotado, com os cabelos armados e cara de sono. Me recebeu com um abraço gostoso e o café já estava sendo providenciado. Eu já sabia que ele era meio hippie, mas estranhei tanta fumaça na casa.

Eu disse que estava alí para ouví-lo e automaticamente encarnamos a psicanalista e o analisado. Ele tinha nas mãos uma caixa com fotos antigas, que curiosamente estavam recortadas. Notei que ele recortava algumas pessoas nas fotos, inclusive a noiva no dia do casamento. Este foi o início da conversa. Ele começou me explicando esta desconstrução, pois aquelas pessoas representavam para ele, frutos de um sistema corrompido com o qual ele não queria pacto.

O apartamento também está sofrendo transformações. Ele está se desfazendo da mobília tradicional e deixando no lugar apenas o que considera básico. Tudo alí é metafórico e tudo expressa sentimento e arte. 

E enquanto ele falava e apresentava-me sua visão de mundo, eu ia compreendendo a lucidez gigantesca, no meio de toda aquela loucura. Coisas do tipo: "A palavra mendigo na Colômbia, tem a ver com descartável... quando estava lá, fiquei chocado com essa expressão, por isso não descarto mais nada, junto sucata pra aproveitar, quer ver?" E abriu o armário da cozinha, me mostrou umas embalagens vazias de batata chips e disse: "Vou fazer uns caleidoscópios pras crianças com câncer brincarem."

Ele me contou sobre o dom de pastorear, sobre a paixão pelas almas que o motivaram a deixar tudo e ir para a Colômbia, onde sofreu as piores decepções com relação ao sistema religioso, privilégios de alguns, perseguições a ele que não se dobrou, os boicotes e depois de dez anos dando o sangue neste ministério, foi descartado.

Este assunto o deixou com os olhos injetados e lá do fundo da alma veio brotando mais uma reflexão: "As chamas de duas velas, não entram em atrito. Antes iluminam juntas e dissipam as trevas. Não deveria ser assim entre nós?"

Falou sobre a crise no casamento, sobre os efeitos da religiosidade nas decisões e sobre o fim. Falou sobre a briga com Deus e sobre a ânsia de recuperar o tempo que julgou perdido. Se tornou agente de trânsito, começou a faculdade, mergulhou nos sonhos e na sede de crescimento pessoal. Queria ganhar o mundo, mas descobriu que o Dom de Deus é irrevogável. Cristo pulsava dentro dele.

Falou-me sobre o livro, que conta esta história de desconstruções políticas, religiosas, econômicas, buscando uma liberdade e um modo de vida que não se conforma com o mundo, com sua frieza e falta de amor. O homem que trazia o peso do mundo nas costas, encontrou no Evangelho vazio de dogmas, a leveza pra espalhar no mundo tudo o que aprendeu com Cristo.

Neste meio tempo seu alter ego o ensina a se livrar das cargas insuportáveis das mágoas e subtituí-las pela autenticidade, que só os servos de Jesus, na Ordem de Melquesedeque conhecem, porque nestes, a orientação vem de dentro. O livro conta a trajetória deste homem que desejou ser correto e foi engolido pelos sistemas corrompidos. Mas ressurge na leveza de uma mente livre.

Como  agente no trânsito, lida com a injustiça e privilégios, onde é obrigado à se omitir, a calar sua indignação. Nos últimos 15 anos, perdeu a noção de quantas vezes foi xingado e desrespeitado nas ruas. O acúmulo de pressões, despertaram nele o desejo de sumir, mas como não era possível, se isolou em casa mesmo, num processo depressivo que terminou num surto. Ele usou a janela do apartamento como palanque para denunciar tudo o que viu e ouviu. E no momento em que o país manifestava, ele aproveitou a oportunidade e fez sua parte. Foi parar na TV. Todo mundo queria saber quem era aquele agente que tirou a roupa na rua.

Entre um assunto e outro, um cigarro e lá se foram mais de 4 horas de papo. Não vi o tempo passar, tudo o que ele dizia, vinha carregado de vida. Apesar da dor física, para mim, aquilo era reflexo do peso que ele carregou nas costas, a indignação com o mundo, o inconformismo. Toda dor prolongada na alma reflete no corpo. Mas ele disse algo que é verdadeiro: a desconstrução o deixa livre para encarnar o Evangelho por onde vai...

Ele prega o amor no trabalho, nas ruas, no trânsito, nos encontros. Ajuda um aqui, outro alí e ninguém precisa saber. Por onde vai, espalha a gentileza, fala do bem, pacifica, faz justiça. O mundo é seu ministério. Jesus, um amigo que vai com ele.

Na despedida ele me disse: "Janete, foi terapêutico!" mas sou eu que me sinto privilegiada, por ter conhecido um ser com tamanha força e perseverança. Ele encantou minha tarde... conheci alguém que de fato encarnou o Evangelho. Valeu muito, amigo.

"A linguagem da cruz é loucura para os que se perdem, mas, para os que foram salvos, para nós, é uma força divina."
1 Coríntios 1:18

6 comentários:

  1. Vida... o que é a vida senão o resultado dos encontros, dos relacionamentos, das conversas...
    Viver só pelo respirar não faz uma vida, apenas se estabelece a existência, mas que sem o próximo não ganha os enredos nem faz história.
    Viver é se relacionar, seja com invisível ou com o visível, pois sempre teremos uma história de vida para compartilhar.
    Obrigado Janete por nos dar esta oportunidade, de conhecermos outras pessoas através do seu VIVER.
    Abs fraternos

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  2. Meu querido, que saudades de você!
    Andando pela vida, nos encontros, no compartilhar de histórias, que nos reconhecemos uns nos outros como parte de um organismo só. Que coisas lindas Deus tem me proporcionado através dos meus amigos! E que riquezas tenho garimpado em cada um deles... estou ansiosa pra que chegue fevereiro, pra te abraçar fraternalmente mais de perto :)

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  3. Sangrando
    Gonzaguinha

    Quando eu soltar a minha voz
    Por favor entenda
    Que palavra por palavra
    Eis aqui uma pessoa se entregando

    Coração na boca
    Peito aberto
    Vou sangrando
    São as lutas dessa nossa vida
    Que eu estou cantando

    Quando eu abrir minha garganta
    Essa força tanta
    Tudo que você ouvir
    Esteja certa
    Que estarei vivendo

    Veja o brilho dos meus olhos
    E o tremor nas minhas mãos
    E o meu corpo tão suado
    Transbordando toda a raça e emoção

    E se eu chorar
    E o sal molhar o meu sorriso
    Não se espante, cante
    Que o teu canto é a minha força
    Pra cantar

    Quando eu soltar a minha voz
    Por favor, entenda
    É apenas o meu jeito de viver
    O que é amar

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  4. Obrigado, Janete! Me são mais consolo suas palavras do que qualquer outra coisa.

    Júlio

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  5. O Escritor que nasce em mim

    Como sou satisfeito com o fato de que o lugar e o momento mais importantes da minha vida sempre serão o meu aqui e o meu agora (coube-me nesse exato instante até um abraço surpresa) e isso enquanto existir fôlego, essa minha passagem histórica, às vezes pretensiosa por ser tão ingrata ao reconhecer tamanha pequeneza minha, anda faminta de deixar no tempo uma digital na matéria e nada mais. Assim, como o mínimo pólen irresistivelmente se desprende da flor para flor continuar ser. Ou seja, merece uma palavra escrita que, se não justifica, tenta no mínimo explicar tanta beleza de existir e meramente existir.
    Foi-me necessário olhar os lírios do campo, mas antes eu precisei de tempo para tal disciplina do espírito. E esse tempo por vezes julguei desperdício tal qual a covardia de se represar um rio, seja eu vítima ou não. Importa que aconteceu. Daquele ponto eu jamais teria a possibilidade de vislumbrar a naturalidade com que correm sobre o leito as águas, as mesmas águas que em algum ponto tranquilo de uma ou ambas margens regam a erva verde e seguem na direção do oceano imenso e profundo.

    E é exatamente neste lugar e momento em que me encontro. O concreto perdeu sua força e a represa rompeu e o rio sempre permanecera rio, já que a essência também permanecera e não fora barganhada. O que antes julguei serem lágrimas, hoje me são águas que avolumam minha sede, desejo e força de seguir meu rumo.

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    Respostas
    1. Não foi nas asas da liberdade que ouvi o canto do canário. Foi contemplando a gaiola dependurada na janela do terceiro andar, . E eu, emoldurado na parede do segundo andar do bloco 12 com um cigarro na mão, os olhos atravessando o cemitério que dá de frente para a sala de estar. Era apenas um blefe de saudade e melancolia. Na verdade, aquela relva verde se me estendia como feltro de uma mesa de poker e as placas de cimento sobre as covas anunciando início e fim de vários mundos se esparramavam matematicamente como cartas de um baralho. E o por do sol pousando de crupiê. Ironicamente vi meu irmão descansando o corpo no cabo de uma enxada como se estivesse num campo de trigo. Sorriu pra mim e bradou: "Maninho, se na mesa de poker você não sabe quem é o otário, o otário é você".

      Eu sei que a vida não é nenhuma poesia. E sei que não se dá palavras a quem te pede pão. No entanto, também sei que nem só de pão quer viver o homem.

      Porque antes de mais nada o quero dizer é que minhas palavras são feitas de sangue, suor, lágrimas e esperma. E vinho, espumante e cachaça. Café e fumaça. Minhas palavras não encobrem o hálito do cigarro nem o meu irresistível hábito de usar metáforas. Razão óbvia demais para que eu não minta nem pra mim mesmo, pois a vida que vejo é a vida que vivo. Minhas palavras têm total cumplicidade comigo, portanto.

      Se tiro a roupa no meio da rua
      Não é a roupa que tiro no meio da rua
      Sem pudor, visto-me da verdade que me cobre
      Da medida que me cabe
      E se arrancasse o couro?
      E se oferecesse a pele por pergaminho?
      Leiam aí o que está escrito
      Em tinta escarlate
      Já que uma cicatriz no rosto
      E um sangue que escorre
      Podem ser meramente sinal de vida

      Não. Não são palavras. E não se trata de um livro.

      Verbo, carne, sangue, dor, orgasmo, carinho, perdão, sorriso, bom dia, por favor, pois não, muito obrigado, às ordens, abraço, bem-vindo, beijo, massagem, fotografia, sorvete, fragilidade, gentileza
      Filho da puta, ladrão, come-quieto, morcego, malandro, bandido, "Raca"

      Não, não são palavras. Sinto muito por decepcioná-los.

      Há uma palavra entalada na minha garganta
      Ao ponto de ser tentado a calar-me e que meus olhos a gritem
      E que minha perplexidade surda fale por mim
      E meu corpo se dobre em voto de silêncio
      Há uma palavra a que devo minha vida e tempo daqui por diante
      Porque, na verdade, sempre foram assim todos os meus dias
      Uma busca inquietante por esse palavra
      Uma palavra que, mesmo sem sabê-la,
      Fez do meu passado destino
      E deu sentido a tudo quanto vivi
      E acompanha-me ainda hoje
      De uma forma tão estranha
      Quanto o foi na minha infância
      Andava eu atrás da Poesia que me fazia andar
      Ainda que perdido, pois andar perdido é também caminhar
      É apenas por descuido que se acredita no acaso.
      Ademais, preencheu-me de esperanças sem a necessidade de certezas.

      Nasce um escritor
      E meu desafio e desejo daqui por diante é versar tal palavra no Romance

      O Umbigo de Adão
      Uma Cicatriz de Dor e Prazer da Existência

      Javier Cardona

      P.S. Estou apenas passando a chave na porta do Quarto do Desejo, organizando a bagunça, retirando a poeira. É hora de trabalhar.

      Desejem-me sucesso e fracasso
      Pois o que mais desejo
      E a quem quer que leia
      É o Dzjo sobre o qual desejo escrever
      Na absurda convicção de que tal palavra
      É suficiente para calar meu tormento

      Beijo!

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