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terça-feira, 12 de setembro de 2017

A grande capa

Não foi intencional, mas certo dia a mulher do espelho enxergou-se vestida com uma grande capa que de certa forma a isolou de conviver com outras pessoas e suas ameaças. Vestida assim, deixava de se expor, deixava de ser julgada, deixava inclusive de ser mulher, tornava-se praticamente invisível no meio das multidões.

Tantos anos se passaram e finalmente ela despertou para uma realidade. Quem de fato se esconde lá dentro daquele grande volume? No âmago dessa criatura, o que de fato é uma grande crosta de coisas adquiridas e o que faz parte do ser. Dizia ela: "Quem sou eu e quem é o "si mesmo" de quem preciso me livrar?"

Desde a tenra idade não se encaixou. Sempre foi a estranha, a ruim, a feia, a agressiva, a grossa, a apagada, a tímida, a chata, a infantilizada demais. Sequer sabia que qualidades tinha, porque não lembrava de ter sido elogiada alguma vez. Era sempre a causa das brigas e a culpada dos desentendimentos. Foi treinada pra ter a autoestima adoecida, criada pra não ver valor em si mesma. Funcionou... cresceu sem entender o mundo e sem ser entendida por ele.




Nada naquela criatura estranha acontecia no tempo certo, dentro dos padrões ou aprovado pelas convenções sociais. Dava vasão à todos os seus impulsos e não tinha muito senso de responsabilidade. Parecia nunca se culpar de nada e se permitir de tudo, mas no fundo tinha o sonho de ser aceita em algum momento.

Não que ela não tentasse dar certo, sim tentava. Mas sabe-se lá porquê, ficaram pelo caminho uma infinidade de sonhos e carregados pela enxurrada das circunstâncias, lá se foram as suas esperanças de ter uma vida próxima do comum.

E hoje, diante do espelho, finalmente percebeu que essa grande capa, é um peso desnecessário para levar nos lombos. Chama a atenção mas não por aprovação, mas por estar completamente fora do que é aceitável. O peso do olhar de pena de alguns e o desprezo de outros... ela já não se lembra por que deixou-se vestir assim.

O si mesmo, é tudo aquilo o que fomos adquirindo durante a trajetória, mas que não faz parte do conjunto que forma o verdadeiro eu. É formado de amarguras, traumas, respostas de carência, marcas de violência, conceitos adquiridos, manipulação, herança dos outros. É preciso identificar o verdadeiro eu, debaixo dessa grande crosta, essa imensa capa que é o si mesmo. Arrancar tudo isso dói, mas é preciso para liberar o âmago, o ser, o verdadeiro valor de ser quem é.

Todo o mal que nos fazem, só pode atingir essa crosta, o si mesmo, jamais o eu que está protegido no âmago. E hoje diante do espelho, a mulher decide se despir de uma vez por todas. Esta criatura cheia de marcas vai finalmente se permitir ser quem é. Recomeçar não é nada fácil, mas tudo depende de uma decisão. 

Livrar-se-á da velha crosta repugnante e será uma alma coberta apenas de verdades.
Despir-se-á da capa adiposa e finalmente se permitirá novos olhares.
Chega de carregar tanto peso desnecessário!