Ultimamente parece que o autismo tem se multiplicado, ou pelo menos tem se multiplicado o grau de informações que levam as pessoas a buscarem ajuda de acordo com a necessidade de suporte de cada indivíduo dentro do espectro autista.
Mas há 50 anos atrás, para uma família desconfiar da possibilidade de um filho ser neuro diverso, era necessário um grau de prejuízo cognitivo muito grande, ou a criança passável enfrentava suas dificuldades sem ajuda mesmo.
Me lembro como hoje da minha dificuldade de interação na escola, mas antes preciso dizer o que ouvi da minha mãe. Eu era um bebê que não ia para o chão. Minha mãe disse que era cuidado dela me deixar somente no carrinho, até que alguém me colocou no chão e eu já fiquei de pé segurando e alguns dias depois andei sem nunca ter engatinhado. Imagino que para aceitar ficar no carrinho até um ano, eu devia ser uma criança muito apática.
Poucos meses depois fiquei muito doente e regredi no desenvolvimento. Conforme as enfermidades iam se agravando, deixei de caminhar e só voltei a desenvolver depois dos dois anos, até três, quando me recuperei completamente. Porém, eu era uma criança que chorava muito e não ia com ninguém além da minha mãe.
Me lembro de muitas situações quando minha mãe precisava me deixar com outras pessoas para trabalhar. Eu sempre tinha crises de choro e gritos, algumas pessoas não tinham paciência e pra mim era muito difícil ter que lidar com outras pessoas. Minha irmã mais velha brincava com outras crianças, conversava, mas eu não. Me lembro que ficava perto dela, mas não interagia com ninguém. Até me retirar pra casa, deitar no chão esgotada, onde ficava até me sentir melhor.
Fui para a escolinha com três anos, mas assim que chegava, deitava numa rede e dormia até a hora de ir embora. Minha mãe desistiu de me deixar lá. Depois aos cinco, fui estudar de fato.
Nessa pré escola, a professora chamou atenção da diretora para minhas diferenças. Eu sentava em w no chão e elas vinham me corrigir. A professora me estimulava a interagir, me relacionar, mas eu só aceitava ficar com ela. Passei o ano todo sem participar dos eventos, apresentações, mas aprendia com facilidade. Em alguns momentos tinha crise de choro quando algo saia fora do esperado, ou quando me sentia pressionada. No ano seguinte, eu dispersava muito fácil e ficava " no mundo da lua", continuei sem interagir e em casa, sempre que chegava alguém de fora, eu me isolava no quarto, ou dentro do guarda roupa, debaixo da cama, até me aproximar devagar. Conseguia interagir um pouco usando meus irmãos como instrumento. Sem eles eu não conversava com ninguém.
Conforme cresci, na minha escola elegia alguém que também era isolado, tendo um coleguinha de cada vez. Nunca queria participar de nada e sentia muito desconforto até para responder a chamada. Nunca fiz educação física na vida e só passava de ano porque me davam prova escrita.
Aliás, na adolescência era uma dificuldade falar em público e apresentar trabalhos, então na divisão de tarefas, muitas vezes eu escolhia fazer o trabalho sozinha, para outras pessoas apresentarem na turma. Fui reprovada duas vezes sob o argumento de que era imatura para passar, mesmo tendo nota suficiente. Me sentia muito mal, estava sempre só e quando chegava em casa era muito irritável e agressiva. Nunca consegui mentir, sempre fui tida como grossa e ríspida porque não dava voltas e dizia o que pensava sem filtro. Também era teimosa, porque precisava concordar com o argumento para obedecer. Não cabia no mundo, nunca me encaixei, era angustiante não conseguir me expressar. E assim, meu tratamento eram repreensões, castigo, surras e uma coleção de estigmas que até hoje tenho que desconstruir.
Na adolescência também tive muitas dificuldades de interação, mas tinha uma amiga e minha irmã para fazer a ponte. Enquanto elas interagiam, namoravam, eu estava só por perto assistindo. Só depois dos 15 tomei coragem para beijar um rapaz. Aos 16 tive o primeiro namorado, que não me levou muito a sério porque sempre fui infantilizada.
Além das características que já citei, tenho um jeito de andar peculiar, alguns stins com som ou gestos. Não me encaixar também me trouxe episódios de depressão e ansiedade. Tive muitos relacionamentos sem profundidade, mas pouquíssimos namoros. As pessoas não estão preparadas para quem é diferente e eu só me esforçava até um certo limite. Tive poucos amigos próximos a vida inteira, a maioria se aproveitou de uma certa ingenuidade que sempre tive. Colecionei decepções e isso contribuiu para que eu vivesse a vida inteira praticamente só.
Não posso dizer que sou frustrada. Tenho um filho que consegui criar só com a ajuda da minha mãe, tenho netos que também auxilio, construí, trabalhei, produzi e aprendi a controlar meus traços autistas. Interajo por algum tempo, depois me recolho na minha paz. É um desgaste de energia estar com muita gente, mas se for por pouco tempo consigo. As maiores dificuldades eram na infância e adolescência, mas hoje estou tranquila.
Aprendi a me expressar escrevendo. Falando ainda sou muito travada. Odeio falar ao telefone, barulho e muita informação.
Tenho o hiperfoco na minha fé, onde busco compreender e falo muito nesse assunto. São poucos os meus interesses. Na maioria dos assuntos que a massa ama, eu simplesmente não entendo nada: esportes, regras de jogos, games, filmes, política, uma gama muito grande de assuntos. Não adianta tentar entender, parece que só absorvo conhecimento se me encantar muito. Assim como as pessoas que me relacionei, sempre houve primeiro uma admiração. Algo que sobressaísse muito.
Sobre literalidade, não entendo ironias, piadas, caio fácil em pegadinhas. Sou pontual, odeio mudanças, me incomoda até mesmo trocar um móvel de lugar.
Diagnóstico? Tentei uma vez, mas no SUS só tem acompanhamento quem oferece perigo à família. No meu caso de investigação neurológica não encaminhavam. Fiz o questionário por conta própria e o resultado confirmava minha suspeita, mas como na época não tinha condições de pagar particular, deixei pra lá. O que vivi está vivido, o que pude evoluir, melhorei. O que não muda, continuo vencendo diariamente. Um dia entenderei.
Mas com toda dificuldade, ainda discordo dessa classificação de pessoas. Afinal ninguém é igual a ninguém, nem um autista é igual ao outro. E por esse prisma, quem é neurotipico ou neurodiverso?
Fato é que nunca foi fácil, mas a gente vai se treinando para ultrapassar as barreiras e vencer as batalhas. Viu como se aprende figuras de linguagem? Não sei se algum dia terei um laudo, mas no fundo cada um é quem sabe o que é. Um profissional entenderá na medida das nossas próprias respostas e avaliará em cima da nossa avaliação.
Continuarei daqui do meu mundinho explanando sobre minhas impressões de vida, já que não consigo falar em público e passei muito mal nos momentos que tentei. Pelo menos escrevendo me faço entender. E é assim também que me insiro no mundo, pelo menos onde me dão ouvidos.