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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Em algum lugar...



Estampidos no alto do morro...
A mãe deitava sobre os três filhos, como a galinha faz com seus pintinhos. Passado o susto, as crianças voltavam a brincar...
A menina do meio era estranha... cabelos lisos desgrenhados, pés descalços e pernas perebentas (porque os insetos daquele lugar eram contaminados pelo esgoto a céu aberto). Era estranha... ora encabeçava as traquinagens, ora se isolava no quarto, por horas à fio, perdida em seu mundo imaginário, onde era feliz.
Esse jeito tímido entre os estranhos, a tornavam uma excluída. Na escola, não participava de nada, não se enturmava, estava sempre com o pensamento longe, não conversava nem sobressaía. Só de ouvir a professora dizer seu nome, dava-lhe um frio no estômago! E a qualquer dificuldade, lágrimas inundavam a classe... às vezes, no meio da aula, recortava bonequinhos de papel e viajava...
Em casa era a "ovelha negra". Induzia os irmãos a praticarem as artes mais cabeludas... era agressiva, tinha unhas felinas. Num só golpe, três ou quatro fios de sangue! Era a prova do crime, o castigo era certo e quase diário.
Era agressiva... mas a vida também a agredia!
As brigas em casa eram cotidianas por causa do adultério do pai. A avó querida, sofria de uma doença incurável e a própria situação deprimente do lugar...tanta coisa junta!
Se perdia quando recebia carinho... parecia um gato! Tanto por ser arisca, quanto por ser chameguenta.
Os pais davam conta de dar-lhes o básico, mas não de realizar-lhes os sonhos, por isso, sonhavam pouco...improvisavam seus brinquedos.
Ela criou o péssimo hábito de fuçar no lixo dos vizinhos, catava cacos de brinquedos, principalmente bonecas. Foi punida várias vezes, mas não parou de procurar... no fundo, nem ela sabia o que buscava.
À noite, dormia ouvindo o miado dos gatos. Tinha medo do barulho, medo do escuro, medo das vozes internas... amanhecia gelada na cama molhada de urina... não sabia se explicar...
Menina estranha... não se encaixava no contexto! O mundo não a aceitava, ou ela não aceitava o mundo?
...
O espelho reflete uma balsaquiana de olhos tristes... pedacinhos de sua história, vêm como flashs involuntários... ela tenta encontrar a origem de seus medos, sua insegurança, sua dificuldade de se encaixar no mundo que a cerca... sua facilidade de se contentar com o pouco, de se conformar com o lixo...
As lembranças resistem, devem ter um propósito!
O tempo passa... a menina não cresce... continua estranha...


...


A menina presa no tempo

No mundo que existe dentro

tempo que não acompanha o relógio

mundo que não acha o futuro


O choro, se ouve no silêncio

do escuro da noite fria...

pequena no meio da cama,

tentando apagar as lembranças


Menina presa na história

história que não muda a página...

Menina que não acorda

do sonho ruim interminável...

Por fora, o tempo não pára,

por dentro, o tempo não passa...

4 comentários:

  1. Querida Janete,

    Li este conto caminhando do lado de fora da menina. Observando-a apenas. Como somos iguais! Como a dor do outro me incomoda! "Ai de mim", digo, lembrando do profeta Miquéias. Não sou capaz de sentir o suficiente para acreditar que aquilo que doi ali afeta aqui também. Somos mal. E se a graça não nos transformar, nada seríamos.

    Obrigado pelas suas palavras de consolo!

    Beijos.

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  2. "No mundo tereis aflições..."
    Cheguei à conclusão de que é bem mais difícil vencer as aflições que vem de dentro, do íntimo do nosso ser, que aquelas em que somos coadjuvantes nesse mundo tenebroso...
    mas apesar de assistir essas cenas de outro prisma, consigo conservar a esperança, o sorriso e principalmente a fé, num Deus gracioso, que me transforma a cada dia.
    beijos, Felipe!

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  3. Profundamente belo!

    O conto mais belo lido neste ano.

    ......
    Sensibilidade.


    B-joletas, querida

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  4. Oh, amiga...
    Fico lisonjeada com suas palavras carinhosas e feliz com sua presença constante na minha vida!
    b-joletas fraternas! :D

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